O mestre e as vitrines
Antonio Pastori
Certa vez, em uma rua de Salvador,
lá estava ele a olhar vitrines.
Fazia isto todas as tardes. A banquinha de revistas, um papo com o jornaleiro,
o cafezinho com beiju na padaria e depois.... as vitrines. A preferência era a
livraria mais próxima onde ficaria até o sol se pôr. Esguio, longa barba
branca, bengala de carvalho reluzente, o velho professor caminhava com
dificuldade, passos calculados por entre uma multidão indiferente (multidão não
calculada, fazer o quê com a hora do rush?). Mas era tudo feito com muita
elegância. A bengala, adornada com madrepérola e prata, bailava feito um grande
pêndulo nas suas passadas A mão arrumava os cabelos ao passo que aqueles olhos
verdes definiam onde a bengala cortaria caminho. Eram de um verde aguado
contrapondo a cor ao brilho de vida que irradiavam. Um aluno espirituoso disse,
certa feita, que os velhos olhos do professor tinham deixado toda a matiz nas
páginas de livros lidos.
E não foram poucos.
Lá estava ele com mais um,
tentando chegar à livraria. A multidão não deixava frestas para conferir o
título. O professor se não carregava-o embaixo do braço, deixava-o escorrer até
a mão em intervalos matemáticos.
Um grupo de alunos se reunia na
praça para acompanhar a sua rotina. Sempre o velhinho carregava um livro até a
livraria. Apostava-se em Twain, em Machado, em Neruda, em Pound. Apostava-se
mesmo. Em dias passados o sabido mestre, percebendo a diversão dos aprendizes,
chegou a repetir a mesma obra em edições com capas diferentes. Ganhou o Alfredo
que conhecia a obra de Garcia Lorca como ninguém e citou uma a uma as várias
publicações de Romancero Gitano
bailando naquelas velhas mãos pela multidão.
Um murmúrio dos colegas chamou a
atenção. Estava difícil dessa vez. Nem Alfredo arriscava. Quando pressionado
fez pose, franziu o cenho, mas as palavras não saíram. Crime e Castigo, gritou um dos meninos sem a menor preocupação. O
olhar cheio de descaso dos outros o fez corar. Todos sabiam que Dostoievski não
era o preferido do velho mestre. Sombrio demais para aqueles olhos cheios de
vida. Talvez Kafka. Mas o que ainda não teria lido e relido do escritor tcheco?
O professor já se aproximava da livraria. Os olhos curiosos puderam confirmar a
cor da capa: azul. Um livro azul de letras escuras.
Uma certeza: era uma edição nova.
A lógica foi listar os últimos clássicos reeditados. Poderia ser também algum
lançamento. Não acreditavam na possibilidade.
Os passos lentos, mais firmes
conduziram ao destino. A última chance dos meninos foi no momento em que
empurrou a porta. Doze Contos Peregrinos,
é esse! Alfredo afirmou convicto.
Esperaram que o mestre saísse para conferir com o balconista. Desta vez demorou
mais que o normal. Já pensavam em desistir. Alguém notou que ele já se dirigia
a saída. Não, ainda não ia sair. Acompanhado de um dos funcionários da livraria
caminhou vagarosamente até a vitrine. O funcionário abriu espaço entre Jorge
Amado e João Ubaldo e colocou o livro azul. Não esperaram que o professor se
distanciasse. Correram até a vitrine e puderam comprovar que Alfredo desta vez
errara. Ele próprio leu em voz alta e pausadamente: Os curiosos aprendizes da praça.
Num imenso alvoroço invadiram a
livraria atrás da história dos eternos palpites de fim de tarde daqueles jovens
leitores curiosos. Alfredo, com um sorriso desconcertado, ficou a observar o
velho mestre alcançar a esquina, com seus passos difíceis, mas calculados. A
bengala de madrepérola foi a última sumir com seu balanço. Como um velho
pêndulo.
Com a colaboração imprescindível de Cristina Mascarenhas, a maninha.
Salvador, junho de 1998
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