domingo, 18 de setembro de 2011

Mais uma crônica encontrada na velha mochila


O mestre e as vitrines
Antonio Pastori

Certa vez, em uma rua de Salvador, lá estava ele  a olhar vitrines. Fazia isto todas as tardes. A banquinha de revistas, um papo com o jornaleiro, o cafezinho com beiju na padaria e depois.... as vitrines. A preferência era a livraria mais próxima onde ficaria até o sol se pôr. Esguio, longa barba branca, bengala de carvalho reluzente, o velho professor caminhava com dificuldade, passos calculados por entre uma multidão indiferente (multidão não calculada, fazer o quê com a hora do rush?). Mas era tudo feito com muita elegância. A bengala, adornada com madrepérola e prata, bailava feito um grande pêndulo nas suas passadas A mão arrumava os cabelos ao passo que aqueles olhos verdes definiam onde a bengala cortaria caminho. Eram de um verde aguado contrapondo a cor ao brilho de vida que irradiavam. Um aluno espirituoso disse, certa feita, que os velhos olhos do professor tinham deixado toda a matiz nas páginas de livros lidos.

E não foram poucos.

Lá estava ele com mais um, tentando chegar à livraria. A multidão não deixava frestas para conferir o título. O professor se não carregava-o embaixo do braço, deixava-o escorrer até a mão em intervalos matemáticos.

Um grupo de alunos se reunia na praça para acompanhar a sua rotina. Sempre o velhinho carregava um livro até a livraria. Apostava-se em Twain, em Machado, em Neruda, em Pound. Apostava-se mesmo. Em dias passados o sabido mestre, percebendo a diversão dos aprendizes, chegou a repetir a mesma obra em edições com capas diferentes. Ganhou o Alfredo que conhecia a obra de Garcia Lorca como ninguém e citou uma a uma as várias publicações de Romancero Gitano bailando naquelas velhas mãos pela multidão.

Um murmúrio dos colegas chamou a atenção. Estava difícil dessa vez. Nem Alfredo arriscava. Quando pressionado fez pose, franziu o cenho, mas as palavras não saíram. Crime e Castigo, gritou um dos meninos sem a menor preocupação. O olhar cheio de descaso dos outros o fez corar. Todos sabiam que Dostoievski não era o preferido do velho mestre. Sombrio demais para aqueles olhos cheios de vida. Talvez Kafka. Mas o que ainda não teria lido e relido do escritor tcheco? O professor já se aproximava da livraria. Os olhos curiosos puderam confirmar a cor da capa: azul. Um livro azul de letras escuras.

Uma certeza: era uma edição nova. A lógica foi listar os últimos clássicos reeditados. Poderia ser também algum lançamento. Não acreditavam na possibilidade.

Os passos lentos, mais firmes conduziram ao destino. A última chance dos meninos foi no momento em que empurrou a porta. Doze Contos Peregrinos, é esse!  Alfredo afirmou convicto. Esperaram que o mestre saísse para conferir com o balconista. Desta vez demorou mais que o normal. Já pensavam em desistir. Alguém notou que ele já se dirigia a saída. Não, ainda não ia sair. Acompanhado de um dos funcionários da livraria caminhou vagarosamente até a vitrine. O funcionário abriu espaço entre Jorge Amado e João Ubaldo e colocou o livro azul. Não esperaram que o professor se distanciasse. Correram até a vitrine e puderam comprovar que Alfredo desta vez errara. Ele próprio leu em voz alta e pausadamente: Os curiosos aprendizes da praça.
Num imenso alvoroço invadiram a livraria atrás da história dos eternos palpites de fim de tarde daqueles jovens leitores curiosos. Alfredo, com um sorriso desconcertado, ficou a observar o velho mestre alcançar a esquina, com seus passos difíceis, mas calculados. A bengala de madrepérola foi a última sumir com seu balanço. Como um velho pêndulo.      
                                                                             
Com a colaboração imprescindível de Cristina Mascarenhas, a maninha.

Salvador,  junho de 1998

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