sábado, 10 de setembro de 2011

Cadê? Um velho artigo novinho, novinho


Cadê a batida, velho?

Antonio Pastori

Odeio escrever sobre assuntos em extinção. O último texto foi sobre a ararinha azul e deu no que deu. Até hoje aquela estória de cruzamentos e contrabandos não engoli nem a pau. Mas diante desse convite da Província lá pelos idos não me pergunte quando, tive que abrir mão da promessa. Pela longevidade da boemia e em defesa da cultura etílica lá vai: cadê a batida, velho?


Sim. A velha batida, marca registrada de festas, carnás, forrobodós e bazófias dessa Bahia, está com seus dias contados. Alguém tinha que bradar isso um dia. Vê se pode. Já não se encontram mais batidas nas galhofas citadas acima e também nas praias, nos hotéis, botecos, enfim, nas mãos de gringos ou clandestinos. Baianos autênticos ou adulterados. O culto às roskas dominou as bocas e a batida bateu biela na roda do tempo.  


A fruta misturada com cachaça, batidas no liquidificador. Aqueles copos multicoloridos em diversos sabores. Engarrafadas com rolha de nó de cana. Elas ganhavam o mundo em carros recheados de meninos e meninas cheios de boas ou más intenções. Trafegavam no único ato que cultiva tanto a solidão como o encontro.


Batida de limão, de coco, tamarindo, caju, maracujá (as mais famosas). Mas tinha sofisticações tropicais como sapoti, abiu e cupuaçu. Umazinha com canela, outra com leite condensado. Aquela que levava mel. Mas todas, eu disse todas, tinham a  fruta e a azuladinha de combustível. Combinação irresistível que marcou época? Nada! Esse negócio de marcar época é a maior furada. Fulano marcou época na MPB... Se você quiser enterrar um sujeito, um estilo ou qualquer caldo cultural fala isso e marque missa.


A batida seduz. Basta fazer. E quem fazia bem feito, enchia qualquer biboca. Diolino era a personificação da batida. Seu ponto no Rio Vermelho era pré, pós ou a própria farra.


Quem há de negar a sexta da escapada? Namoro no portão, aquele zero a zero que muita gente tem saudade? Mas era só de sábado à quinta. Sexta-feira, mocinhos do século XXI, era sem lei. Gatos e gatas circulavam pelo Rio Vermelho. O epicentro era Diolino. Elas chegavam de mansinho, em grupo, cabelos ao vento. Eles, a postos, batidas em punho. Futebol na pauta. Batiam um Ba-Vi legal. Butice, Douglas, Natal...Osni, André e Mário Sérgio. Batidas de limão e piadas infames. De coco e azaração. De maracujá e papo cabeça. Ou o famoso leite de camelo, de receita misteriosa, que acalmava mocinhas segurando vela.


O cantinho foi evoluindo. Diolino, ponto de encontro. A batida: o motivo, a desculpa ou o zig now. Garrafas e garrafas eram compradas. Gatos e gatas invadiam o Abaeté, o Jardim de Alah, as praias desertas da orla. No tempo em que invadir a praia à noite não era sinônimo de bandeira otária para aquela galerinha levar até as suas calças. Ao som dos brindes das batidas e zunzunzuns mis, serenatas rolavam. 


O poetinha Vinícius de Moraes chamava o whisky de “cão engarrafado”. Vinícius curtia essas baladas. Participou de muitas serenatas. Trocava o whisky pelas batidas. Bebeu muitas delas do seu reduto perto do farol ao bairro da Graça onde compôs “Tarde em Itapoã”.


Porto da Barra, década de 70. Final de tarde. As barraquinhas na areia vendiam batida a rodo.  Lenny Dale, do Dzi Croquetes, Caetano Veloso, sunga rosa e bata branca. Não consta nos arquivos que Caetano degustava. Mas o Lenny adorava a de pitanga.
Pierre Verger. Ia sempre ao Diolino. Fatumbi só tomava de coco. Ele era o apreciador de gosto unitário e degustação perfeita.


É curioso este paralelo com a figura de Verger. Suas fotos do universo pesqueiro. Dos transeuntes baianos. Dos orixás. Dos costumes afro. Sua negritude da alma.
A batida, apesar de ter surgido no final do século XIX, no interior de São Paulo, está colada na história à negritude. Ao samba de roda. Batida de palma. Música do mundo.

As festas baianas tinham sua bebida oficial. Uma identidade bacana que modismos efêmeros sugaram. Meteram a mão e quebraram a guia sem pedir agô. Sacanagem. Ou como diz um velho amigo que não conehcia batidas: é o "medíocre na mediocridade".


A cultura etílica é uma necessidade. Cada povo tem a sua. Tá na cara e na boca. Se alguém pensou aí em vinho italiano, congnac francês, scotch britânico, nada disso é requinte e sim identidade cultural. Mas eu vou é para a Ypióca cearense, o Pitu pernambucano, a Meia Lua mineira, a Abaíra da Chapada. Não a Abaíra branquinha, mas aquela misturada com cascas de madeira da boa que dá uma coloração ímpar e um aroma sedutor.


É o velho segredo de leis boêmias dos nossos antepassados: não adianta beber, tem que degustar. Bebida boa evoca todos os sentidos, tá falado? A boa batida era assim. Cheiro, toque, mira e som entorpeciam o ser humano antes da virada.


O poetinha, mestre Verger, Dorival, Jorge Amado eram amantes especiais da bebida mais democrática dessas bandas. Que ela está em extinção, como alertei no início, só mala e bebedor de canudo não vê. Não estou a fim daquele discurso barato de “resgatar” (sic ou argh!, escolham...) a velha batida de encanto e sabores. Do jeito que a coisa vai por aqui, isso só vai dar em cópia fria e arte não é feita de reproduções.


Um líquido decente para esta província!

Essas bebidas mascaradas pelo gelo, enganadoras à língua, um falso prazer.


Fico com a verdade das batidas e seu estado de frutas. Um brinde a Diolino, Evoé Fatumbi!



3 comentários:

  1. Belíssimo !
    Muito oportuna e deliciosa lembrança ! Justo resgate das brumas da memória
    para sorvermos nas tendas da saudade!
    Lembro-me de um samba-de-roda(creio que de Cachoeira, mas se não for de um cachoeirano o sujeito merecia ter nascido lá): "Batida de côco não é de limão/ não é não ..."

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  2. Cumpade, Cachoeira, a Ilha e o Rio Vermelho povoaram as minhas lembranças quando escrevi "Cadê a Batida?"

    Evoé, Xorxinho!!!

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  3. "É o velho segredo de leis boêmias dos nossos antepassados: não adianta beber, tem que degustar."

    Hoje, na manufatura, é tudo assim: instantâneo. Degustar? Há quem procure no dicionário e não nos sabores.

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