quarta-feira, 9 de junho de 2010

Carta a Luciano Ferreira

Fernando Coelho


Luciano: eu não ví você chorar.

Em muitos e muitos dias, enquanto o sol mordia nossa solidão, você nos dava um ombro cheio de mansardas do futuro para nos consolar. Nas variadas manhãs, mesmo com o pão quente ainda nas padarias renitentes, você já vagava nos escaninhos com cheiro de peixe da feira de Itapuã, para encontrar a mais gorda petitinga para nosso desjejum. Eu não vi você chorar. Letra por letra as paredes de frases da barraca foram se desmanchando. E, com a areia, viraram uma sopa de saudades. As nossas saudades largadas na Praia de Pituaçu, bem ali, onde gente da França, da Itália, da Alemanha, de todas as Américas e lá do profundo fundo do meu e do seu recôncavo baiano, nos encontrávamos para esperar a vida nos encontrar. Luciano, eu não vi você chorar. No meio fio da orla, quente de nada e de maldade, todos os barraqueiros sentaram-se para deixar evaporar pelo sórdido asfalto, o último suspiro dos seus negócios atropelados. Negócios simples, sujos de lama dos caranguejos lerdos, mas o ganha pão de todo dia. Na fumaça da moqueca teimosa, você nos levava a passear no jardim de infância de Iemanjá. Lembra-se? O jardim acabou. Luciano, eu não vi você chorar. A barraca de coqueiros, ventos, húmus e música, enfermaria indormida de todos nós, sede e palco da reverberação da República do gozo e da verdade, ruiu. Por quê? A barraca, a sua barraca, tinha alma. E morreu de pressão arterial alta de amor, como os meus olhos inchados de tristeza sempre previram. Foi em sua barraca, numa tarde perdida para além dos escombros patrocinados pela Prefeitura de Salvador, que eu chorei pela primeira vez por causa de Isadora. Minha neta tinha somente 6 anos e me encabulava com a eternidade. Mesmo assim, Luciano, eu não vi você chorar. Tem que se cumprir a Lei. A Lei não é má. O homem é que é. Pega a Lei, coloca-a, cega que é, sobre um trator e manda derrubar sonhos. Infelizmente, Luciano, sonho não fala. Só morre. Ninguém consegue contar os mortos com a queda de sua barraca, Luciano. São infinitos. São lamentos em vários idiomas. São almas que foram levadas pelo pior dos acidentes atmosféricos: a indiferença humana. Muitos poetas ficaram órfãos. Muitos jornalistas que nunca tiveram espaço para assinar uma coluna, encontraram em você o leitor e admirador de discursos incorrigíveis. E os artistas plásticos, aqueles que labutam com a forma e a cor? De sua barraca imaginaram o mundo, a arte, a genialidade, sem recorrer a Picasso, ou Van Gogh, ou Calasans Neto, ou ao mestre Mário Cravo Júnior. E em sua barraca construíam suas obras de emoção. E tantos mendigos de praia comeram ali. Eu mesmo. E tantos funcionários públicos que não tinham onde sentar em suas repartições, onde encostar o surrado paletó cinza, encontravam em você o estimulador para a madorra e a acolhida para o desencanto coletivo. Mesmo assim, eu não vi você chorar Luciano. Agora, neste momento que tento não lhe escrever, invoco Violeta Parra, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Castro Alves. T.S.Elliot, Allen Ginsberg, Cuíca de Santo Amaro. Para não chorar. Eu estou indo embora, Luciano, para não chorar. Nadir ainda promete o macarrão quente, com molho vermelho de tomates vermelhos de esperança, para você não chorar. Por isso, você não precisa chorar, Luciano. Eu sei que agora, como antes, você guarda nossas lágrimas.

2 comentários:

  1. Não dá pra dizer nada sobre a estupidez de quem, de forma violenta, mata a história da cidade onde vive.

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  2. A poesia só nhabita a alma de quem sonha. E sonhar é, também, rememorar, sem fim, os momentos felizes. São eles que adoçam nossa esperança.Ligia Cruz

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