segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Aldeia & Ilha





A CARTA DAS JANELAS DE UM JANEIRO SEM FIM

(ao poeta Marcello Chalvinski)

Ouvindo Washing on the Water


amigo amigo
coração quando é maço amassado
queda outonos nos teus beirais

e borboletas são acasos
janela nunca se fecha

nunca se fecha a janela.
é ninho de predileção dos pousos.
para garças e temporais

para outubros ou nada
até para essa folha inerte gestada parida daquele outono

e o coração é só um coração
bomba encarnada aos tambores
massa bolada de carne em lisergias
o jardim abandonado em casarões

tornei-me também amigo
refém de cinzéis e martelos
escultor de sombras e de adeus

escravo eu sei
dos versos meus

mas
andarilho dos navios de ferrugens secretas
e da água que sangra aos passos inquietos
 
antes que a última garça atravesse o velho céu dos novembros
antes que o rio vermelho e praia grande beijem a bocabrasa das litanias

domaremos a dança do fogo
bailaremos nas cinzas de jornais e folhetins
e também mijaremos na fogueira das vaidades.

amigo amigo
estou triste entre tochas semiacesas na mesma praia dos gritos azuis
estou triste nas ranhuras do ocaso entre o amarelo e o vermelho

coração em nacos
pulso & nitro
cais & gasolina

e o amor é um jardineiro errante entre a traição das semeaduras e a morte da flor
e o amor é só a cercania que se gasta na imprecisão de inquietos respiros
o amor é sim o maço amassado do que sobra ao espírito entre lábio & músculo 

ao chão
e ao céu,
ao temporal
atemporal.

é também novembro ou never
meu poetapoema de panaquatira

e dentro do dentro de um poema dilacerado
e dentro do dentro das semiluzes bulinadas
e dentro do dentro do barro do cigarro do escarro

o acaso é a esfinge  

e eles insanos são
e nós sem nós não somos.

e rangem
e manjam
e fungam
e rasgam

lacram as janelas.

é o fim da estrada dos loucos peregrinos
é o ocaso do janeiro por ele não mais morrer

colherei pedras?
gritarei por auroras?
ou beijarei também a lady vestal?

onde estão os infectos?
em homilias fajutas?
em bulas moribundas?
em manuais de sobrevivência?

correm como hienas sem cara
ou nos abraçam como múmias
e o riso pobre é só e congelado 

amigo amigo
agarro o manto dos incêndios
somos apenas apanhadores de sonhos
como escrevi ao filho tão filho certo dia:

porque tolos são aqueles que não enxergam
a bagunça verdadeira da invenção dos dias
no descompasso dos corações
no descontínuo das respirações
na inconclusão de tintas
no desafino sublime
de nós e de tantos nós

tolos são aqueles que desistem
por uma negação idiota
uma inveja velhaca
um grafite dando uma de diamante

em semeaduras do tempo companheiro
na certeza de pele, do cheiro e da alma

porque sim
se somos apanhadores de sonhos
somos também artesãos das liberdades concretas

amigo
o aperto é nó
nesta bola de carne
dentro do dentro

do que dele se traz e leva
dos beirais & profundezas

deixo a carta
deste janeiro sem fim
e um balé de garrafas

e que só o rio das aldeias solares amanhe a morte das velhas borboletas.


20 de janeiro 14
arte: angelus (salvador dali, 1933)

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