A CARTA DAS JANELAS DE UM JANEIRO SEM FIM
(ao poeta Marcello Chalvinski)
Ouvindo Washing on the Water
amigo amigo
coração quando é maço amassado
queda outonos nos teus beirais
e borboletas são acasos
janela nunca se fecha
nunca se fecha a janela.
é ninho de predileção dos pousos.
para garças e temporais
para outubros ou nada
até para essa folha inerte gestada parida daquele outono
e o coração é só um coração
bomba encarnada aos tambores
massa bolada de carne em lisergias
o jardim abandonado em casarões
tornei-me também amigo
refém de cinzéis e martelos
escultor de sombras e de adeus
escravo eu sei
dos versos meus
mas
andarilho dos navios de ferrugens secretas
e da água que sangra aos passos inquietos
antes que a última garça atravesse o velho céu dos novembros
antes que o rio vermelho e praia grande beijem a bocabrasa das
litanias
domaremos a dança do fogo
bailaremos nas cinzas de jornais e folhetins
e também mijaremos na fogueira das vaidades.
amigo amigo
estou triste entre tochas semiacesas na mesma praia dos gritos azuis
estou triste nas ranhuras do ocaso entre o amarelo e o vermelho
coração em nacos
pulso & nitro
cais & gasolina
e o amor é um jardineiro errante entre a traição das semeaduras e a morte
da flor
e o amor é só a cercania que se gasta na imprecisão de inquietos respiros
o amor é sim o maço amassado do que sobra ao espírito entre lábio & músculo
ao chão
e ao céu,
ao temporal
atemporal.
é também novembro ou never
meu poetapoema de panaquatira
e dentro do dentro de um poema dilacerado
e dentro do dentro das semiluzes bulinadas
e dentro do dentro do barro do cigarro do escarro
o acaso é a esfinge
e rangem
e manjam
e fungam
e rasgam
lacram as janelas.
é o fim da estrada dos loucos peregrinos
é o ocaso do janeiro por ele não mais morrer
colherei pedras?
gritarei por auroras?
ou beijarei também a lady vestal?
onde estão os infectos?
em homilias fajutas?
em bulas moribundas?
em manuais de sobrevivência?
correm como hienas sem cara
ou nos abraçam como múmias
e o riso pobre é só e congelado
amigo amigo
agarro o manto dos incêndios
somos apenas apanhadores de sonhos
como escrevi ao filho tão filho certo dia:
porque tolos são aqueles que não enxergam
a bagunça verdadeira da invenção dos dias
no descompasso dos corações
no descontínuo das respirações
na inconclusão de tintas
no desafino sublime
de nós e de tantos nós
tolos são aqueles que desistem
por uma negação idiota
uma inveja velhaca
um grafite dando uma de diamante
em semeaduras do tempo companheiro
na certeza de pele, do cheiro e da alma
porque sim
se somos apanhadores de sonhos
somos também artesãos das liberdades concretas
amigo
o aperto é nó
nesta bola de carne
dentro do dentro
do que dele se traz e leva
dos beirais & profundezas
deixo a carta
deste janeiro sem fim
e um balé de garrafas
e que só o rio das aldeias solares amanhe a morte das velhas borboletas.
20 de janeiro 14
arte: angelus (salvador dali, 1933)
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